Futebol, definitivamente, não é só um jogo. É patrimônio cultural, mitologia contemporânea, criação artística coletiva. É ferramenta de inclusão social, instrumento de coesão nacional, elemento de construção da identidade coletiva. E um negócio fabuloso.
A Copa do Mundo é o ápice inconteste de todos esses aspectos. É o marco unificado no calendário de centenas de nações normalmente desencontradas na contagem do tempo. O direito de participar de uma Copa é disputado ao longo de vários anos (as eliminatórias sul-americanas começaram em outubro de 2007). O direito de sediar uma Copa, por período ainda mais extenso. A Rússia já defende sua candidatura a país sede de 2018, tendo como rivais Inglaterra, Espanha e Portugal (juntos), bem como Bélgica e Holanda. Estados Unidos, Qatar, Coreia, Japão e Austrália se oferecem para 2022.
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Trégua e anestesia
Os apelos à paixão e solidariedade não são meros artifícios. Assim como em outros grandes negócios – cinema, música – a exploração comercial não suprime os sentimentos e emoções que, de fato, acompanham a atividade.
Entrou para a história a trégua estabelecida durante uma guerra civil no antigo Congo Belga, em 1969, para que a delegação do Santos de Pelé pudesse transitar e jogar em segurança...
Em plena crise política, os hondurenhos deixaram suas diferenças de lado na noite em que o país se classificou para a Copa, e as ruas ficaram lotadas com a comemoração. Na Sérvia, a classificação para a Copa também propiciou raro momento de unidade e orgulho nacional.
Caso emblemático de injeção de ânimo foi a vitória da Alemanha na Copa de 1954 (retratada no filme “O Milagre de Berna”) quando o pais se encontrava em ruínas. Um segundo momento como esse foi quando a Alemanha sediou a Copa de 2006 e o povo exultou com a possibilidade de se mostrar amistoso e unido, 16 anos depois da queda do Muro. “Queremos demonstrar que somos um país democrático, que respeita a integridade humana”, disse Peter Struck, ministro da Defesa, em evento promovido pela Fundação Friedrich-Ebert, em sua sede em Berlim, pouco antes do início da Copa: “Does Football Rule The World?” (“O Futebol Rege o Mundo?”). Seu propósito era discutir os efeitos de grandes eventos esportivos para o conjunto da sociedade a curto e médio prazo.
Curiosamente, o aspecto puramente comercial não pareceu, na ocasião, tão bem resolvido quanto os candidatos a país sede acreditam ou dão a entender.
Os organizadores da Copa de 2002 na Coreia apresentaram o balanço de seus investimentos: as receitas com patrocinadores e ingressos não cobriram as despesas com o evento. O número esperado de turistas, 540 mil, não foi atingido – chegou-se a 450 mil. O incremento na atividade turística e comercial depois da Copa também não durou como esperavam. Portanto, os resultados “tangíveis” foram negativos – o que valeu foi o “intangível”: “o aumento da autoconfiança no país, um ‘upgrade’ no espírito de que ‘nós podemos’, uma vitrine para a divulgação de produtos e tecnologia reforçando nossa imagem no exterior”.
A conclusão dos representantes de Portugal (sede da Eurocopa 2004) e da França (Copa do Mundo de 1998) não foi diferente. Os eventos proporcionaram a aceleração de algumas obras e investimentos, mas a um custo altíssimo – inclusive o de manutenção, que é permanente.
Na Alemanha, a Copa ajudou a reformar e revitalizar estruturas antigas – o metrô, em Munique, havia sido construído para a Olimpíada de 1972 – e serviu como impulso para concluir projetos de infraestrutura por meio de parcerias entre governo e iniciativa privada. Mas os organizadores se ressentiam das condições leoninas impostas pela FIFA – que exige uma série de garantias governamentais e isenção tributária sobre todas as suas atividades no país. O fator “risco” é todo do país sede. O fator “lucro” é da FIFA, que recebe milhões (em direitos de transmissão, acima de tudo) sem risco algum. Em longo prazo, o desempenho econômico recente de países que foram sedes de grandes eventos demonstra, de forma clara, que o efeito de uma Copa ou Olimpíada pode ser tão volátil quanto a glória esportiva. Atenas recebeu os Jogos Olímpicos seis anos atrás e nem por isso a Grécia escapou de enorme crise. O Japão se debate com altas taxas de desemprego e déficit público altíssimo.
A caminho de sediar dois grandes eventos, o Brasil já não precisa seduzir a comissão julgadora, mas os investidores. Os benefícios para a autoestima dos brasileiros e prestígio internacional já se fazem sentir; não podemos pôr a perder esse que é o único ganho indiscutível. O desafio agora é dar transparência aos custos e à execução dos projetos. O aficionado por futebol sabe que a organização é a melhor moldura para o talento; que improviso funciona quando há entrosamento; que autoconfiança em excesso prejudica o desempenho, e que não adianta comemorar antes do fim do jogo. Que façamos uma boa Copa e que os ganhos sejam mesmo da nação, e não apenas dos proprietários da marca registrada.
Soninha é jornalista especializada em futebol, vereadora de São Paulo e integrante do Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.
FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil - Ano 3, n. 35, junho de 2010.